Especial Estúdio ao Vivo · Teatro Mágico
Ele chega cheio de cores. O rosto pintado, violão na mão, performance de ator, palhaço e artista. Fernando Anitelli muda de fases no palco: ora, menino brincalhão, ora, moço apaixonado. Sempre, um “palhaço todo pintado de piadas”. Por vezes romântico, noutras, engraçado. Discursa a favor da música alternativa, canta influências e exalta o público. Declama, rima, canta, encena… E junta tudo numa coisa só.
O Estúdio ao Vivo entrevistou o Fernando Anitelli para descobrir quem escreve o roteiro do TM. A resposta, você vê agora.
Estúdio ao Vivo · A que veio o Teatro Mágico?
Fernando Anitelli · Teatro mágico é a tentativa de amplificar as coisas que acontecem no sarau, que tem como essência não se exibir com o trabalho, mas compartilhar, agregar outros valores, dialogar, trazer à tona os personagens escondidos de nós, somar idéias… É incrível como quando a gente tem a possibilidade de se juntar com outras pessoas, escrever, compor, ouvir, aprender a ouvir, aprender a ser paciente.. É incrível o quanto isso traz de resultado bom pra gente. Então o TM está aí para mostrar que todo tipo de arte, todo timbre dialoga. A gente tá aí pra batalhar pela arte independente, pela música e cultura livres, o acesso à educação pras pessoas. É essa a idéia: juntar tudo numa coisa só.
Estúdio ao Vivo · Quais são as influências musicais, teatrais, do TM?
Fernando Anitelli · As influências musicais começam com Ney Matogrosso, Secos e Molhados, Mutantes, Antônio Nóbrega, Lenine, Zeca Baleiro, Tom Zé, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, gosto muito de Gil, Raul Seixas, Renato Russo… E as influências literárias: Clarice Lispector, Mário de Andrade, Mário Quintana – adoro -, Carlos Drummond, Cecília Meirelles, esse pessoal todo. E Denise Stoklos também, adoro e tenho influência dela muito naquilo que eu tenho do que é fazer arte.
Estúdio ao Vivo · Porque optar por fazer uma divulgação boca-a-boca do trabalho?
FA · Porque a divugação alternativa foi a única alternativa que nos sobrou. Nunca nenhuma rádio deu espaço pra gente, nenhuma TV… E isso foi, é o tempo todo com outros trabalhos, com outros compositores, o que é uma pena, porque a arte do país todo fica atrelada sempre a conchavos, a reuniões nas quais realmente a cultura não é discutida. É discutido dinheiro, valor e compra de espaço dentro de mídias. Então, na verdade, a idéia do boca-a-boca, de incentivar essa pirataria saudável de “compartilhem informação, grave um CD, entrega pra alguém”, isso foi sempre a nossa essência, a gente batalhou pra caramba pra isso, pra que todo mundo tivesse acesso ao trabalho. Por isso eu libero as músicas todas na internet, mp3. E quando eu montei o trabalho, eu gravei o CD em 2003 sozinho, não tinha banda nem trupe nessa época. Eu fiquei com o CD pronto, convidei 30 amigos pra participar, e aí eu fui buscar os amigos. E as pessoas vieram a entender a idéia do projeto. De 2003 pra cá alguns músicos já mudaram, alguns atores… A idéia é sempre poder agregar mais, é tornar sempre cada vez mais o nosso trabalho algo mais maduro filosoficamente, teatralmente, musicalmente.
Estúdio ao Vivo · Como o TM consegue um público tão fiel – e tão raro – mesmo sendo mais underground/alternativo?
FA · Acredito que porque o público entende que eles não estão (aqui, o Fernando fala com voz alterada, atuando) “looonge” na platéia, nós somos artistas que estamos na Ilha de Caras, e depois está no sofá da Hebe, e aparece, e sobe no disco voador da Xuxa, e vai embora… Não, todo mundo sabe que é um trabalho independente, que começou tocando lá em bordelzinho, em teatrinho “véio”, em lugar pequeno, em casa de show que não tinha nem acomodação… E desde cedo a gente sempre acabou a apresentação, conversamos com o público, divulgamos essa idéia “pirateiem nosso trabalho, divulguem a arte, façam saraus”. Então todo mundo sente que faz parte da Trupe. O público é uma extensão da Trupe. Nas brincadeiras, na gritaria, na palavra, na hora de fazer uma coreografia junto, na hora de ler uma poesia pra gente… Outro dia eles pararam o show pra ler uma poesia pra gente. Poxa, então acontece uma porção de coisas em função do público. Eu acho que essa coisa de “sucesso”, é até um pouco filosófico discutir. Porque isso não se explica, essa coisa eu não vejo como sucesso. Eu vejo como uma porção de gente botando fé num trabalho que não está sendo empurrado güela abaixo pra eles, é um trabalho que tem muita veracidade naquilo que faz. Então todo mundo se sente parte da Trupe, e por se sentir parte, se sente família. E quando a festa é em família, todo mundo vem e é uma bagunça só.
Estúdio ao Vivo · Como foi a experiência de gravar com o Arnaldo Antunes?
FA · Na verdade, a gente não gravou ainda com o Arnaldo, a gente vai gravar. Ele fez uma participação numa apresentação nossa no Centro Cultural Vergueiro (SP). É uma música chamada “Sobrenomes”, que eu falo uma porção de nome estranho. Minha mãe chama Delmina, minha avó Isolina, minha tia Odilene, Felístia, Florinda. Eu falei “gente, quem vai fazer uma cançao pra essas mulheres?”. Uma coisa é você cantar (cantarolando) “Bárbara!”… Ana Júlia ou então Mariana. Agora vai cantar “Delmina, Odilene”… Eu fiz uma música pra essas mulheres e no final eu sempre fico fazendo uma brincadeira, como se o Arnaldo tivesse participando: “Etelvina, Francileide, Fatimália, Melanina, Fluocsetina..” Daí pô! A gente sempre interrompia a coisa, eu sempre brincava, imitava Arnaldo Antunes. Aí os fãs mandaram coisa na comunidade, pra casa dele, foram ao show, pediram… Ele apareceu, compareceu, participou do show com a gente. Já falou “meu, me chama que eu vou gravar”. Então a gente tá super feliz por isso também.
Estúdio ao Vivo · A intenção do TM é ‘recriar o antigo mundo circense no dia-a-dia do mundo contemporâneo’. O que é esse antigo mundo circense?
FA · O mundo circense é esse mundo de família. Pode ver, todos os grandes circos são “não-sei-o-quê BROTHERS”; “não-sei-o-quê FAMÍLIA”. O circo é formado de família; carnaval é feito por família. Essa tradição do circo em buscar as coisas em família, em grupo, em Trupe… Era isso que a gente queria trazer pro palco aqui. O circo é aquele tipo de arte, muito desvalorizada aliás – até porque não tem nenhuma legislação no nosso país pra cuidar somente de circo – mas é justamente aquele momento onde você pode ser aquele seu personagem espontâneo, verdadeiro, você aprende no circo, de geração em geração. Palhaço é um exemplo disso. Se você falar “você sabe andar de moto, com uma melancia na cabeça?”, ele não sabe. Mas ele vai falar que sabe. Porque ele é disposto. Por isso é que os opostos se distraem. Os dispostos se atraem. Então é justamente esse clima de família, de união, de mostrar que é a verdade, é o diálogo, é a oportunidade, essa força em comum faz as coisas aconteceram. Esse espírito de circo que a gente queria trazer.
Estúdio ao Vivo · Por isso é importante recriá-lo hoje então?
FA · Exatamente. Porque o mundo de hoje é muito midiático. Você se expõe e se vende no Orkut, fica preso numa casa 3, 4 meses, sai de lá um artista. Então é um mundo onde a informação chega rápido, a mídia, o efeito especial, não-sei-o-quê, blábláblá… Quando na verdade se a gente touxer um pouco dessa coisa do circo, de improvisar, de ser expontâneo, de saber ouvir, de estar disposto a aprender, de cuidar, de manusear qualquer coisa… Porque no circo é assim: o cara que está no trapézio tá vendendo churros lá fora depois. O cara que tá cuidando do leão, tá vendendo pipoca lá. Essa é a multiplicidade que existe dentro de cada um de nós, é isso que o circo traz, é isso que o circo oferece. E dentro deste mundo tão corrido que a gente não cosegue se preocupar com mais ninguém a não ser a gente mesmo, a gente traz essa idéia de circo pra falar “pessoal, não esqueça da família”, aquela família que você escolhe mesmo, sabe? É esse tipo de coisa, de força, que a gente quer jogar pra galera.
Estúdio ao Vivo · Por que o TM é só para raros?
FA · Lara, só existe uma Lara no mundo que pensa como você, que sofre como você, que tem os medos que você tem, que tem os teus anseios, os teus sonhos, que se propõe a fazer as coisas como você faz. Só tem um cara como eu, Fernando, que faz as coisas assim, desse jeito, que tem uma certa saudade, que tem um certo ciúme… Cada um de nós é um personagem raro, um personagem único. Automaticamente, o ser humano já está em extinção. Então, a gente tem que cuidar, porque todo momento é raro, todo momento é digno. No CD fala “O Teatro Mágico: entrada para raros”. A pessoa fala “só para raros? Então eles estão excluindo?”. Não. Todo mundo é raro, só que não sou eu quem vai dizer isso pra você. Cada um tem que sentir: “poxa, eu sou uma pessoa rara. isso é pra mim”. O CD é pra todo mundo.
Estúdio ao Vivo · Então pra ser raro basta…
FA · Basta existir.
Estúdio ao Vivo · O que é mais marcante no TM? Aquilo que se for retirado de vocês, o TM deixa de ser?
FA · Eu acho que se tirar o improviso, a simplicidade, a humildade, o nosso chão, a nossa essêcia é justamente essa: sarau, teatro de rua. Não pode faltar isso, essa natutalidade, esse carinho e coragem sempre. Porque pra fazer arte tem que ser corajoso, igual pra ser profesor de rede pública. E acho que não pode faltar isso no Teatro Mágico: carinho, verdade, coragem, improvisação, espontaneidade. O resto está em cada um de nós, cada um traz, soma com o outro e vira isso daí que você viu.
Estúdio ao Vivo · Você diz que o cotidiano é um teatro mágico. O que faz do cotidiano um teatro mágico?
FA · O que faz é que o tempo todo nós somos um personagem. O trabalho nos cobra uma postura de um personagem. Eu chego em casa pra falar com a família, é outro personagem. Tem uma balada sexta-feira à noite, é outro personagem. A mulher foi viajar, o cara vira outro personagem… E cria uma relação hipócrita, as pessoas criam uma relação de mentira umas com as outras nesse mundo gigante. Todo mundo vira um personagem, que fala aquilo que bem entende, foge na hora que acha conveniente… Então, estamos vivendo num Teatro Mágico. A questão é: quem escreve o nosso roteiro? Se a gente é um personagem, poxa, vamos trazer à tona outros personagens, não vamos rir da mesma piada, não vamos ter o mesmo medo há 10 anos. Vamos nos propor a amadurecer. O Teatro Mágico do nosso cotidiano nos cobra sempre um personagem um tanto bem maior. E acho que a gente tem que estar disposto a trazer novos personagens à tona, de dentro de nós.
Estúdio ao Vivo · Na música ‘Eu nao sei na verdade quem eu sou’ você diz que ‘sonho é uma coisa que fica dentro do meu travesseiro’. Lá ainda tem algum sonho seu?
FA · Vários, na verdade. O TM hoje ainda é 11% daquilo tudo que eu tenho como objetivo, como meta pra realizar com ele. Eu também quero que a gente tenha uma lona, também quero que esse trabalho seja divulgado, que tenha acesso para as pessoas. Quero que sirva de exemplo para que outros grupos locais também trabalhem, compartilhem suas músicas e troquem idéias. Sonho, graças a Deus, é uma coisa que eu nunca vou deixar de ter. O (Charles) Chaplin dizia isso: “O homem não morre quando deixa de viver. O homem morre quando deixa de sonhar”. Sonhos? Muitos ainda. De todas as áreas tem coisa ainda que eu quero fazer, quero buscar, acredito.
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O Estúdio ao Vivo agradece aos integrantes do Teatro Mágico. À Gabi, DJ HP e Fernando Anitelli, por concederem as entrevistas. Também agradecemos a Dani e a Ana, que propiciaram o nosso encontro com a Trupe. À produção do TM, que nos recebeu com o maior carinho. E a Amanda Oliveira, pelo apoio na construção das matérias.
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Acompanhe a partir de amanhã um pouco mais sobre as aventuras de férias do Estúdio ao Vivo. Você acompanhará novidades nas temporadas de shows do João Bosco, do Arnaldo Antunes e da banda Pato FU.